O especialista argentino Juan Carlos Tedesco também deu uma entrevista para o livro Educación y tecnologías: las voces de los expertos (2011), que você pode ler abaixo. É interessante notar que ele se refere a algumas iniciativas que ocorrem no contexto da Argentina.
*
Como o uso das novas tecnologias impactará na escola?
Não creio que exista um único impacto do uso das novas tecnologias na aula, nem que o impacto dependa apenas da tecnologia. Ao analisar as experiências conduzidas em diferentes países, os especialistas concordam em afirmar que o impacto do uso das novas tecnologias depende do projeto pedagógico no qual se introduz a tecnologia.
Em termos de operações cognitivas, por exemplo, se pode fazer com os computadores o mesmo que já se vinha fazendo com o giz e a lousa. Nesse sentido, dependerá do docente e de sua estratégia: estar introduzindo estratégias de ensino que promovam a aprendizagem participativa do aluno. Estudos muito avançados realizados na Califórnia, região do mundo com a maior densidade de computadores por estudantes e escolas, demonstraram que uma porcentagem muito importante desses aparatos foram utilizados para reproduzir modalidades pedagógicas tradicionais.
Acredita que a escola tenha muitas expectativas quanto ao ingresso dosnetbooks na aula?
À medida que o docente conhece as novas tecnologias, baixam as expectativas sobre o que elas podem provocar e produzir no processo de ensino e aprendizagem. Existe muito mais expectativa quando o professor desconhece do que quando sabe do alcance e limitações implicados no uso dos computadores.
É preciso distinguir entre as novas tecnologias como dispositivo didático, e o conhecimento e o seu uso como código da cultura contemporânea
Pessoalmente, não creio na existência de determinismos tecnológicos. Ninguém duvida da necessidade de usar as novas tecnologias na sala de aula. Entretanto, creio que é preciso distinguir entre as novas tecnologias como dispositivo didático, e o conhecimento e o seu uso como código da cultura contemporânea. A esse respeito, é possível fazer uma comparação com a necessidade de saber ler e escrever, ou com a necessidade de estar cientifica e digitalmente alfabetizados.
Este é um bom momento para refletir se deve haver um curso dedicado ao ensino do uso das TICs. Todos concordamos que elas são transversais e comuns a todas as matérias, como no caso dos livros. Porém, não é porque o livro é um suporte para o ensino de todas as matérias que iremos deixar de introduzir no currículo uma matéria específica para ensinar o manejo da linguagem e assim entender melhor o livro. Com as novas tecnologias deve ocorrer o mesmo.
Quais debates são desencadeados no interior do sistema educativo pelo uso das novas tecnologias?
Uma vez que é estabelecida a ideia, por parte das políticas educacionais, que cada estudante deve trabalhar com seu computador, o uso das novas tecnologias deixou de ser uma questão voluntarista do professor ou da equipe docente. Já não depende de se a escolar quer ou quer utilizá-las como dispositivo pedagógico. Agora, deve fazê-lo.
Então, o problema a enfrentar é a forte heterogeneidade do sistema, já que temos professores ou instituições que manejam as novas tecnologias, com experiências muito avançadas e outros que estão muito longe de saber manejar as máquinas. Essa heterogeneidade significa desigualdade.
Por isso, é necessário que todos participemos dessa discussão, não de maneira superficial, mas sim qualificada, perguntando-nos como, de quê modo, com quais sentidos e com que critérios as novas tecnologias devem ser usadas. No meu entender, elas devem incentivar o trabalho institucional.
Os modelos 1 a 1 promovem sair de uma concepção individualista do docente inovador e geram uma maior participação
Nesse sentido, os modelos 1 a 1 promovem sair de uma concepção individualista do docente inovador e geram uma maior participação de todos, nesse diálogo em torno do uso das novas tecnologias.
Os docentes argentinos estão preparados para enfrentar o desafio do Modelo 1 a 1?
As enquetes aos docentes refletem a existência de um espectro variado, com escolas vanguardistas e outra que não têm absolutamente nada, estão sem conectividade nem infraestrutura. Há uma politica de Estado para reverter essa situação, assim como deveria existir uma política educacional para que os docentes incorporassem conhecimento no uso das novas tecnologias a partir de sua formação inicial. E, nesse mesmo sentido, capacitar os professores em serviço.
Apresenta-se, assim, uma grande ocasião para repensar a capacitação docente, superando o enfoque baseado exclusivamente em cursos individuais e fora da escola, que não resolvem o verdadeiro problema. Está provado que o docente sabe e aplica em aula o que outros pares e colegas transmitem na sala de professores, no trabalho cotidiano.
Está provado que o docente sabe e aplica em aula o que outros pares e colegas transmitem na sala de professores
É necessário transformar essa troca entre pares uma política de formação docente: a capacitação em torno das novas tecnologias resulta um tema muito propício para levar em frente esse tipo de experiências, inclusive mostrando como resolver situações de aula diante dos próprios estudantes.
Em um programa tão ambicioso como Conectar Igualdad, que se propõe a distribuir três milhões de computadores, a escala é um dado muito importante para definir estratégias, ainda que elas nunca devam estar desvinculadas do diagnóstico da realidade.
E qual é a realidade na escola? Por que nem todos os docentes são inovadores no uso das novas tecnologias, mas tampouco todos resistem a elas?
Em linhas gerais, podemos descrever três grupos, divididos grosso modo em proporções de 40%, 40% e 20%, anda que conforme as jurisdições e instituições.
Em primeiro lugar, os inovadores, que já trabalham com os computadores e estão muito avançados. Em segundo lugar, os indiferentes: sabem que eles existem, mas utilizam pouco ou nada. Por último, o setor minoritário dos resistentes que veem as novas tecnologias como uma ameaça, e mantêm muitos preconceitos sobre os usos e impactos dentro da aula.
Salvo casos excepcionais, em todas as escolas todos os grupos convivem. Por isso, eu falava da capacitação em serviço dento da instituição e com mecanismo de formação coletiva.
Coloquemos trabalhando junto o inovador com o resistente, para que este deixe seus preconceitos sobre as novas tecnologias e para que o outro deixe de pensar que é o único (uma vanguarda) e perceba que é melhor que avance em seu conhecimento se o restante também faz progressos.
De que modo as novas tecnologias impactam na tarefa do docente na aula?
Em primeiro lugar, reduzem o esforço do professor na tarefa de transmitir informação, porque com a internet ela está aí, ao alcance de todos. Os professores deve gastar seu tempo em transmitir os critérios, os sentidos e as formas com que se deve selecionar toda essa informação.
As tecnologias colocam um nível de exigência mais alto ao docente, similar ao efeito que tem a introdução de tecnologias em qualquer outro processo produtivo: a máquina suprime o trabalhador menos qualificado.
Assim, o trabalho do docente se torna mais complexo, já que deve refletir sobre a aplicação pedagógica no uso das novas tecnologias. O papel do adulto é dominar o instrumento, nesse caso os computadores, para dotá-lo de sentido e formar os critérios dos estudantes, que dominam apenas a parte instrumental.
O impacto das novas tecnologias está em que inverteram o modelo de transmissão cultural
O jovem sabe usar a máquina, mas não tem a formação necessária para saber escolher que informação aproveitar de toda a que lhe oferece o sistema. O impacto das novas tecnologias está em que inverteram o modelo de transmissão cultural. Nas instituições culturais tradicionais, por exemplo, a antiga televisão, com apenas quatro canais para ver, o poder era do emissor. Todos víamos o mesmo. Na atualidade, com a internet e a televisão por satélite, onde está tudo, o poder passou as mãos do usuário. É ele quem decide o que quer ver.
Entretanto, sabe escolher? Pode escolher realmente? Se não possui o critério e sentido, seu nível de escolha é muito pobre. Para poder escolher realmente o que quer, então, tem que conhecer e estar bem informado. Nesse aspecto, a brecha digital é um processo interno a uma brecha cultural, de valores e ideias.
Como esta situação se explica?
Sempre houve rupturas geracionais, porém estamos vivendo uma muito mais profunda, porque as transformações ocorrem em uma mesma geração, quando anteriormente ocorriam entre gerações.
O problema não está nos jovens, mas sim nos adultos, que deixamos de apaixonarmos por nosso patrimônio e por sua transmissão
Se as novas gerações querem construir seus próprios critérios e sentidos, me parece perfeito. Porém, e pode parecer conservador, ninguém pode construir no vazio, sem conhecer o patrimônio cultural que, por outro lado, é suficientemente valioso para ser estudado e para despertar paixão.
Não é possível que as novas gerações não se entusiasmem com Shakespeare ou ignorem os clássicos. Desse modo, os empobreceremos culturalmente, já que, ao desconhecê-los, não existe a possibilidade de que os discutam e os superem.
O problema não está nos jovens, mas sim nos adultos, que deixamos de apaixonarmos por nosso patrimônio e por sua transmissão. O que enriquece o estudante não é tanto o conteúdo, mas sim a paixão com que o docente transmite esses conteúdos. O problema é sério, porque estamos diante de adultos que querem ser jovens, que se concentram no presente, ante um passado que consideram obsoleto e um futuro que percebem como incerto e ameaçador.
Se os jovens se desenvolverem nesta ideia de viver o presente, romper com o passado e não ter ideia sobre que futuro construir, esse vazio será coberto pelos fundamentalismos, seja de mercado, totalitários, ou religiosos; ou pelo individualismo associal.
O processo das novas tecnologias está imerso nessa brecha cultural que devemos fechar ou diminuir, se realmente queremos construir para as novas gerações um futuro com maior justiça social, solidariedade, coesão e respeito pela diversidade.
A escola pode ajudar a criar valores exercendo um papel contracultural à cultura dominante da sociedade atual
A escola pode ajudar a criar estes valores exercendo um papel contracultural à cultura dominante da sociedade atual. Porém, antes é preciso preenchê-la de conteúdo, porque hoje a cultura escolar está vazia, e os docentes são os principais representantes desse mundo adulto que quer continuar sendo jovem.
As novas tecnologias podem ajudar a criar esses valores de que fala?
Em princípio, replicando a experiência da escola sarmentiana, que foi laica, positivista, modernizante e progressista, entre tantos outros valores, que não refletiam o que acontecia fora dela, e que desempenhou um papel como instituição socializadora frente a outros papéis que já desempenhavam a igreja e a família.
O professor foi um ator moderno nesse modelo de escola, e hoje pode voltar a sê-lo, utilizando as novas tecnologias a serviço dos valores anteriormente mencionados, porque elas, por si só, não o fazem.
As redes sociais não fomentam a diversidade: ali se agrupam os que pensam igual ou têm interesses similares
As redes sociais não fomentam a diversidade: ali se agrupam os que pensam igual ou têm interesses similares. Então, fomentemos espaços onde diferentes religiões discutam um tema determinado, ou onde estudantes de setores mais e menos desfavorecidos saltem os muros dos guetos que os separam e conheçam uns aos outros.
As novas tecnologias podem nos ajudar com essas iniciativas, porém, por si mesmas, não as realizam. São instrumentos, não um fim em si mesmo.
As novas tecnologias estão modificando as capacidades cognitivas?
Existem resultados contraditórios a respeito. Certa literatura destaca os jovens multitarefa, capazes de realizar atividades diferentes ao mesmo tempo. Porém, isso é bom ou mau? A verdade é que não sei. Outros sustentam que diminuiu o tempo de concentração e hoje nenhuma exposição deveria se estender por mais de quinze minutos. Isso é avançar ou retroceder? Alguns assinalam que, ao estar submetidos a fluxos de informação permanente, existe uma tendência muito alta a prestar atenção à última notícia recebida, sem avaliar se ela é a mais importante ou não.
É necessário continuar com a investigação e inovação, antes de dar saltos na tomada de decisões. Porém, acredito que é muito importante avançar em processos que fortaleçam a capacidade do setor público, onde o Estado assuma papel de liderança, e não deixe nas mãos da lógica privada esse tipo de decisões.
O Estado acaba de comprar três milhões de netbooks, e a partir da lógica privada se antecipa que essas máquinas serão obsoletas em dois ou três anos. Por que descartá-las se esse instrumento continuar sendo socialmente útil? É aqui que adquire relevância o papel de liderança do Estado.
Mencionou-se anteriormente o papel das famílias no processo de ensino. Em quais aspectos podem ser impactadas pelo Modelo 1 a 1?
Cada vez aprecio menos certas categorias: família, por exemplo. Não existe, “a” família, mas sim diferentes tipos de família que abrange a “não família”. Então, pensar estes vínculos entre família e escola exige contextualizar do que falamos. Há famílias onde o computador já é um objeto mais cotidiano, e outras onde receberam pela primeira vez uma máquina. Aí, pode desempenhar o papel de alfabetizar digitalmente os adultos, como em sua época o fez o livro, quando entrou na casa de pais analfabetos dos alunos da escola.
Nem todos entendem os conceitos manipulados pela escola. Por isso, melhoremos o conteúdo da comunicação. Depois procuremos utilizar as novas tecnologias para aperfeiçoar esse fluxo
Entretanto, em si, a tecnologia não mudará o vínculo dos pais com a escola, nem deles com seus filhos. Se um adulto não exerce controle, não transmite pautas de disciplina, não se preocupa com o rendimento escolar, a tecnologia não ajudará. Pode ser um instrumento para uma comunicação mais eficaz e rápida entre escola e família, mas se o adulto não se interessou antes, por que o faria agora? O ponto principal dessa questão é que tipo de vínculo a escola quer ter com a família. E para isso é necessário também conhecer a situação da família.
Vou contar uma anedota pessoal. Quando era ministro da Educação, sabendo que o comportamento de meu sobrinho-neto não era o melhor, brincava com ele fazendo com que todos os dias me chegasse um informe de como havia se comportado. Um dia apareceu uma notinha no caderno, dizendo que “não respeitava o docente”. Eu ele perguntei o que aconteceu. E ele me retrucou: “O que é um docente?”.
O mesmo pode ocorrer nas famílias: nem todas entendem os conceitos manipulados pela escola. Por isso, antes de mais nada, melhoremos o conteúdo da comunicação. Depois procuremos utilizar as novas tecnologias para aperfeiçoar esse fluxo.
Fonte: http://blog.midiaseducacao.com/2013/03/juan-carlos-tedesco-e-necessario.html